terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Lampreia do Minho pode, afinal, “terr um ligeirro sotaque”

Pescadores da região e biólogos confirmam que, quando o ciclóstomo não abunda nos rios portugueses, recorre-se à importação. Sem prejuízo para ninguém, pelos vistos



Quem se desloca propositadamente à zona do rio Minho para comer a afamada lampreia local corre o risco de acabar por comer um bicho com mais sotaque francês do que nortenho ou que tenha saído de um dos viveiros projectados para a zona. Isto pode ser chocante, sobretudo para aqueles apreciadores do ciclóstomo que acreditam que a lampreia do Minho é melhor do que as outras (ver Fugas de ontem). A realidade é que nada garante a proveniência da lampreia que se come no Minho ou em qualquer outro ponto do país. A invasão do mercado por lampreia francesa também explica – dizem pescadores ouvidos pelo PÚBLICO – a desvalorização acentuada da lampreia do rio Minho, que, este ano, em Janeiro, início de época, foi vendida a preços de Abril, fim de época. Nos primeiros dias do ano, começou a ser vendida a 15 e 20 euros, quando em anos anteriores chegava aos 30 e 40 euros.

Luís Afonso, o maior revendedor da região, responsável por abastecer a grande maioria dos restaurantes do distrito de Viana do Castelo, mas também os de Lisboa, de outros pontos do país e até da capital espanhola, admite introduzir lampreia francesa no mercado, mas só “quando não há em Portugal que chegue para as encomendas”. O pescador Fernando Ferreira garante que muita da lampreia importada “é vendida como portuguesa”. “Este ano, como temos lampreia em grande quantidade, não acontecerá tanto, mas no ano passado a lampreia francesa era o prato do dia”, revela.

A informação é confirmada pela bióloga Carla Maia, uma das cientistas que participaram na elaboração do Plano de Recuperação da Comunidade de Peixes Migradores na Bacia do Rio Douro, estudo que permitiu, entre outras coisas, fazer a caracterização genética da lampreia-marinha. A cientista justifica que a lampreia que chega aos rios portugueses não é suficiente para dar resposta à crescente procura no mercado interno. “Senão não se importava tanta quantidade de França”. A especialista, que ressalva não haver dados precisos sobre o número de lampreias importadas para consumo em Portugal, diz estar em contacto constante com fiscais e pescadores que “falam sempre em milhares”. Carlos Antunes, também ele biólogo, mas no Aquamuseu do rio Minho – instituição que desenvolve um projecto para a valorização de sete espécies daquele rio, entre elas a lampreia –, admite que, “quando há grande procura no mercado e há pouca oferta, recorre-se a outras fontes: lampreia francesa; lampreia do Guadiana”.

Isso terá acontecido, sobretudo, no ano passado. Os números oficiais da Capitania do Porto de Caminha, com jurisdição no troço internacional do rio Minho, apontam para uma quebra na apanha de lampreia no rio Minho nos últimos dois anos. Em 2007, foram apanhadas (declaradas) 38.650 lampreias no rio Minho; em 2008, 41 mil; em 2009, 55.930; em 2010 37.142; e, no ano passado, apenas 24.354. Este ano foram emitidas 215 licenças para a pesca da lampreia no troço internacional do rio.

Luís Afonso, o comerciante que admitiu ao PÚBLICO importar lampreia francesa, não revela quantas vende por ano – “Não lhe digo!” –, mas esclarece que a importação, além de legal, é sempre registada na factura, onde é obrigatório mencionar a origem do pescado. “Eu só vendo lampreia francesa quando não há cá em Portugal. Quando há nos rios portugueses, seja no Lima, seja no Douro, seja no Mondego, vendo lampreia nacional”, reitera.

A importação tenta dar resposta à procura por este ser vivo do tempo dos dinossauros. A procura tem crescido de ano para ano na região do Alto Minho, muito por culpa das autarquias locais, que viram no ciclóstomo um “filão de ouro”. Descobrindo nele um importante factor de atracção turística, nos últimos anos têm apostado na rentabilização da marca “lampreia do rio Minho”. Desde o passado fim-de-semana e até ao final de Março, 96 restaurantes espalhados por seis concelhos (Caminha, Vila Nova de Cerveira, Valença, Paredes de Coura, Monção e Melgaço) vão ter diariamente um prato de lampreia na lista.

Para dar resposta à procura crescente de lampreia sem terem de recorrer à importação, a Associação de Pescadores para a Preservação do rio Minho (APPRM) e a Câmara de Caminha querem construir dois viveiros, que serviriam não para criar, mas para manter as lampreias apanhadas durante a época própria e gerir o stock de acordo com as conveniências de mercado. Os dois viveiros preconizados, a construir em Seixas e na foz do Minho, teriam 120 metros quadrados e 12 tanques. O projecto já foi apresentado ao Governo, mas não tem ainda autorização nem financiamento para avançar. Mário Patrício, vereador da Câmara de Caminha, defende que os viveiros representariam “um passo em frente” no processo de valorização da lampreia do rio Minho: “Através de um sistema que irá ser estudado, os pescadores, ao entregarem as lampreias nos viveiros, podem garantir que são capturadas no rio Minho”.



Ciência não vê diferenças

A lampreia francesa tem fraca qualidade, alegam os pescadores do rio Minho e as autarquias da região. “Não sabem o que dizem”, responde-lhes o revendedor Luís Afonso. E o cozinheiro João Guterres, conhecido por defender a gastronomia típica do Alto Minho e por ser um dos impulsionadores da Confraria da Lampreia do Rio Minho (ver caixa) é ainda mais polémico. “Eu prefiro uma lampreia francesa a uma lampreia de Caminha!” Contraditório? “A certificação da lampreia do rio Minho é uma questão de bairrismo, de promoção”, assume. Nada mais. Até porque, diz quem se dedica há 46 anos à gastronomia e consegue fazer lampreia de 19 diferentes maneiras, “não há diferença nenhuma” entre as lampreias do Minho, do Lima ou até de França. Para João Guterres, a preferência vai para a lampreia que tenha mais tempo de água, que “tenha sido mais batida”, para ficar com menos gordura. “Onde noto diferença é na lampreia apanhada ali na barra, que nos dá um mau produto, se a cozinharmos acabada de pescar. A lampreia que vem de França já vem com muitos dias de água”. “Quem é que me garante que as lampreias são do rio Minho? Ninguém. Nem o próprio pescador, porque há os que as compram quando há falta de lampreia”, acrescenta.

Manuel Rodrigues está no sector da restauração há 32 anos e tem um dos restaurantes do vale do Minho que aderiram à iniciativa de promoção da lampreia que foi lançada pelas autarquias locais e pela Adriminho, Associação de Desenvolvimento Rural Integrado do Vale do Minho. Afirma que ainda hoje procura alguém “capaz” de lhe mostrar a diferença entre uma lampreia francesa e uma lampreia do rio Minho.

“Não há nenhuma característica que distinga a lampreia de um rio do outro, são todas iguais”, confirma a bióloga Carla Maia, que, durante o trabalho que desenvolveu no Douro, fez a caracterização genética da lampreia-marinha. “Recolhemos amostras de lampreias de várias bacias portuguesas e de vários exemplares vindos de França e chegámos à conclusão que geneticamente, aparentemente, é tudo do mesmo stock”.

Esta conclusão prende-se com o facto de, como adianta o também biólogo Carlos Antunes, não existir nenhuma evidência científica de que a lampreia seja fiel ao rio onde nasceu. “Temos lampreias a entrar no Douro que provavelmente nasceram no Minho”, exemplifica Carla Maia, corroborando a tese.

“Que me tragam uma lampreia francesa e uma lampreia do rio Minho, eu preparo as duas e que me digam qual é uma e qual é outra”, desafia o cozinheiro João Guterres.



Certificação difícil - Pescadores já inventaram um chip

É uma verdadeira campanha de marketing aquela que a Adriminho, Associação de Desenvolvimento Rural Integrado do Vale Do Minho, e os seis municípios do vale do Minho estão a lançar para a promoção da lampreia da região. Até ao final do ano, deverá ser criada a Confraria da Lampreia do Rio Minho e os autarcas falam também na certificação daquele ciclóstomo para distingui-lo de todos os outros.

Ana Paula Xavier, coordenadora da Adriminho, confessa que aquela entidade viu na lampreia “um factor a promover”, que “funciona, por si só, como um atractivo turístico da região”. “As pessoas já cá vêm de propósito comer a lampreia”, diz. Conta que, após ter constatado que os restaurantes que servem lampreia em Lisboa e em Madrid têm letreiros a informar que esta é do rio Minho, ganhou certezas sobre o “potencial” turístico do ciclóstomo. Sem meias medidas, a confraria já está a avançar (já tem até uma estilista a desenhar o traje dos confrades). O processo de certificação é que esbarra em algumas dificuldades. Como é que se certifica algo que não se distingue dos seres da mesma espécie que são encontrados noutros rios? A bióloga Carla Maia avisa que, “se a nossa lampreia e a francesa representam geneticamente o mesmo stock, não há uma caracterização local possível”. Carlos Antunes, que está a liderar o projecto de valorização das espécies piscícolas do rio Minho que o Aquamuseu está a desenvolver, e que servirá de base às pretensões da Adriminho e das autarquias, explica que “não há evidência científica nenhuma, neste momento, de que a lampreia do rio Minho seja diferente das outras, assim como não há evidência nenhuma de que a lampreia vá reproduzir-se ao rio onde nasceu”. Com estes argumentos científicos, a certificação apresenta-se como pouco provável.

Percebendo o biólogo a importância da marca “lampreia do rio Minho” – “tem imensa importância económica” – aponta a denominação de origem como o caminho a seguir. “Teremos de conseguir que o consumidor confie que o que está a comer é do rio Minho”. Algo que ficará definido com o Projecto 7 Piscis, que o biólogo está a coordenar e que deverá estar concluído em Maio. O projecto, financiado pelo Promar, Programa Operacional de Pescas, visa a valorização de sete espécies do rio Minho. Por esse caminho, o da denominação de origem, já enveredou um grupo de cinco pescadores (quatro espanhóis e um português), com a criação do RM Minho. Trata-se de um sistema que permite ao cliente final comprovar que a lampreia foi capturada no rio Minho, e quando foi e por quem foi. Isso é conseguido através de uma marca feita no ciclóstomo com uma máquina desenvolvida para o efeito e com a implantação de um chip com um código que, através da Internet, permite obter todas as informações sobre a lampreia à nossa frente, até a foto do pescador responsável pela captura. Benito Guerreiro, o porta-voz deste grupo de pescadores, explica que o objectivo é valorizar o produto, neste caso a lampreia.

O projecto, que já está operativo mas ainda em fase embrionária, já despertou o interesse de uma empresa conserveira galega, que vai começar a utilizar o sistema nas suas conservas de lampreia.


Mitos associados - Uma vítima do preconceito

É um daqueles seres que geram reacções extremadas: uns vibram da cabeça aos pés só com a ideia de o degustarem, outros esboçam esgares de nojo ao ouvirem o seu nome. A lampreia, esse ser contemporâneo dos dinossauros, tem uma série de mitos associados que lhe roubam brilho e glória.

Manuel Rodrigues, dono do Restaurante Verde Pinho, em Moledo, há 30 anos que recebe um casal de Lisboa que se desloca propositadamente ao Norte para comer lampreia. Até há pouco tempo, o relato da história era este: ele comia, deliciado, ela virava a cara para o lado, enojada. Farto da desunião de paladares do casal, Manuel decidiu pregar uma partida à senhora. Deu-lhe a provar lampreia disfarçada em acepipe panado. “Fiz meia dúzia e disse que eram para o marido. Ela começou a comer e só deixou um para o esposo. Perguntei-lhe se estava bom e ela respondeu que não estava bom, estava ‘divino’ e, quando soube o que era, não queria acreditar”.

História semelhante tem para contar o cozinheiro João Guterres. Convidado por um multimilionário de Aveiro para fazer um jantar de lampreia para um grupo de amigos, João foi alertado para a necessidade de fazer um prato cujo ingrediente não fosse lampreia, pois havia uma senhora que não apreciava o ciclóstomo. Homem de desafios, o cozinheiro fez-lhe provar lampreia dentro de hóstia (uma das suas 19 formas de confeccionar o petisco). A senhora comeu a primeira, a segunda e, à terceira, João não resistiu e perguntou-lhe se tinha gostado. A resposta também foi afirmativa.

Estes relatos apoiam a ideia de que muitos daqueles que dizem não gostar de lampreia nunca a provaram. A bióloga Carla Maia avança com uma explicação: os mitos que estão associados à lampreia. E são muitos! O que mais repugnância provoca é o de que este é um animal que se alimenta de cadáveres dos náufragos. “Elas não são necrófogas, elas precisam de alimento vivo, do sangue, dos tecidos. Um corpo em decomposição não terá muito interesse para este animal”, desmistifica a especialista.

A lampreia, que, segundo o registo fóssil, existe desde o tempo dos dinossauros, é um migrador: passa um periodo da sua vida em água doce (fase juvenil) e outro em água salgada (fase adulta).

Os exemplares adultos entram nos rios para se reproduzirem. Fazem ninhos onde deixam os ovos que depois se vão transformar em larvas. Durante uma média de cinco anos, estas pequenas larvas (que numa primeira fase não têm nem olhos nem dentes) vão-se alimentando de pequenas partículas – algas, microalgas, detritos –, vão crescendo até se metamorfosearem numa lampreia com aspecto adulto, apesar de ainda não o serem. Nesta altura, emergem do substrato e migram para o mar, onde vão passar mais um a dois anos.

É em ambiente salgado que as lampreias adquirem a estrutura dentária e uma espécie de ventosa, que utilizam para se agarrarem aos peixes, através dos quais se vão alimentando (de sangue e restos de tecidos). Quando já estão adultas, procuram novamente os rios para se reproduzirem, algo que fazem uma única vez na vida.



Praga na América do Norte

Nos Estados Unidos e sobretudo no Canadá, a lampreia é considerada uma praga. Segundo a bióloga Carla Maia, isso acontece porque o ciclóstomo se tornou predador de espécies endógenas dos grandes lagos locais como a truta e outros salmonídeos, colocando em risco os respectivos ecossistemas. “Elas também subiam os rios, só que, a partir de determinada altura, as grandes barragens transformaram as zonas a montante de todos os rios em lagos, onde elas ficaram fechadas e tiveram de se adaptar uma vida só de água doce”, explica a investigadora. “São lampreias relativamente grandes que sobem aos rios mais pequenos para se reproduzirem e depois descem aos lagos para se alimentarem”.

Por Susana Ramos Martins na edição do PÚBLICO de 12 de Fevereiro de 2012



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