segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Doces conventuais de Vila do Conde: o segredo que atrai pessoas de todo o país


O passo apressado não deixa adivinhar a idade de Arlindo Maia e não vamos ser nós a cometer essa inconfidência. Do alto das suas mais de oito décadas de vida, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde desfia memórias de quem tem obra feita para contar.

À frente da instituição há 27 anos, é ele o responsável por uma das grandes atracções da cidade: os doces conventuais. Vêm pessoas de propósito de Lisboa para cometerem o pecado da gula.

“Ó meninas, dois bonezinhos, por favor”. Na cave do salão de chá do lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde , um dos dois salões de chá da instituição, fervilham aromas que se nos entranham no olfacto e fazem crescer a água na boca. É ali que tudo acontece, onde é dado corpo a receitas resgatadas às freiras que passaram por Vila do Conde. Não fosse o trabalho da instituição e todo este património gastronómico teria ficado perdido no tempo.

Antes de entrarmos na cozinha, Arlindo Maia, que faz questão de seguir escrupulosamente as regras de higiene e segurança, equipa-se com toucas e bata de protecção, não vá um fio de cabelo indesejado ou alguma poeira estragar as verdadeiras obras de arte que estão a ser confeccionadas. Por entre cumprimentos bem dispostos à equipa de seis cozinheiras, o provedor revela que quando assumiu a direcção da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde decidiu apostar na recuperação de algumas artes, tradições e cultura da região que estavam em vias de extinção: os doces conventuais foram uma das aposta. Durante muitos anos, as freiras do convento local faziam os doces e docinhos, bolos e bolinhos que deixavam mais do que um a salivar, mas nunca partilharam as receitas com quem quer que fosse. “Era segredo do convento. Contavam-no de geração para geração, mas cá para fora, nada!”, conta Arlindo Maia. Quando o convento fechou, o receituário tradicional dos doces conventuais de Vila do Conde ficou em risco. Valeram as empregadas das freiras que as ajudavam na confecção pasteleira. As freiras não revelaram as receitas nem em confissão, mas as empregadas, que faziam os bolos e que conheciam os ingredientes e o modo de confecção de cor e salteado, passaram o testemunho. A Santa Casa guardou esses relatos em livro, avançou com formação profissional para a preparação das futuras pasteleiras que iriam dar corpo aos segredos tantos anos guardados e, assim, se continua a perpetuar e preservar um património gastronómico que dá fama à cidade.

O segredo é a alma dos doces conventuais

A chefe de cozinha é a mais baixinha de todas as seis mulheres que se encontram naquela cozinha, mas nem por isso a que tem menos genica. Maria Rosa, que há mais de uma década fez dos doces conventuais profissão, faz questão de manter a tradição do convento. Revelar as receitas? Nem pensar! “Até levamos a mal quando nos pedem, mesmo sendo nossos familiares”, conta divertida. “Nós caprichamos muito no que fazemos e é só nosso, exclusividade nossa”. Ainda assim, vai deixando escapar que alguns dos truques que fazem dos doces conventuais de Vila do Conde exemplares únicos: são todos feitos no dia, com ovos frescos. Os tempos de cozedura, diz quem sabe, são “fundamentais” e um dos “grandes segredos”.

Em cima da bancada de trabalho, as tigelinhas, os doces de chila, os travesseiros, os vilacondenses deixam qualquer um sem palavras. “Só doces conventuais, fazemos para cima de uns 100 de cada qualidade todos os dias”, prossegue Maria Rosa, revelando a razão da sua boa-forma física:”não como muitos doces”.

Os doces feitos naquela cave que não é do Ali Babá, mas que esconde certamente as 40 tentações, são vendidos exclusivamente nos dois salões de chá da Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde, um deles localizado imediatamente no piso superior.

Sala cheia, muitos jovens. É assim diariamente, confidencia Alicia Silva há 14 anos atrás do balcão daquela casa-de-chá. Por lá vem entrar diariamente dezenas de pessoas, entre eles um casal que aparece não diariamente, porque não consegue, mas sempre que vem para Norte. Um casal lisboeta que há muito descobriu o segredo dos doces conventuais da Santa Casa da Misericórdia e que não ruma a sul sem levar consigo umas quantas caixas.

Abrir o lar à cidade

Por lá é também possível ver os utentes do lar, os familiares, jovens das escolas vizinhas e todos os gulosos que conhecem a casa. Foi a fórmula encontrada para vender os doces conventuais fabricados pela instituição, preservando o receituário e em simultâneo transformando a actividade numa forma de rendimento para a instituição. Mas foi, sobretudo, a forma de abrir o lar à comunidade, pedra basilar da filosofia de gestão social do provedor Arlindo Maia. “O provedor sempre foi defensor de que os lares deveriam estar inseridos na comunidade e cada vez mais, com a experiencia que eu já tenho, me apercebo de que isso é verdade”, confessa a jovem Vera Santos, directora do lar de idosos da Misericórdia de Vila do Conde. No cargo há seis anos, Vera percebeu que tudo funciona de forma mais eficaz e feliz se não houver horários de visita e se familiares e amigos dos mais de 200 idosos que acolhem e apoiam puderem conviver num espaço agradável como o salão-de-chá, onde podem ir todas as pessoas da cidade. Um convívio que, dizem os responsáveis da instituição, é fundamental para o equilíbrio dos utentes. “

Doces conventuais são uma fonte de rendimento para Misericórdia de Vila do Conde


Uma média de 100 unidades de cada doce conventual e outras qualidades de bolos são vendidos diariamente, durante os sete dias da semana, a 70 cêntimos nos dois salões-de-chá que a Santa Casa da Misericórdia possui no centro da cidade de Vila do Conde, integrados nas suas instalações. “Até ao dia 25, as pessoas compram muito, mas depois, até ao dia 1, sentimos sempre uma grande quebra nas vendas”, confidencia Conceição Antunes, “braço-direito” do provedor.

Os responsáveis pela instituição preferem não revelar o volume de negócios da actividade, mas o provedor, Arlindo Maia, admite que não dá prejuízo e é uma fonte de rendimento que apoia as actividades sociais da instituição. Mas também ressalva que o lucro não é assim tanto, pois no caso dos doces conventuais são utilizados os melhores e mais frescos ingredientes, normalmente sempre caros: ovos, amêndoa, chila, etc.

Estas maravilhas gastronómicas são confeccionadas diariamente por seis cozinheiras que trabalham a tempo inteiro só na confecção dos doces.

Com um orçamento anual a rondar os 18 milhões de euros, muitas são as áreas a que a Santa Casa da Misericórdia de Vila do Conde chega com o seu apoio social: assistência a idosos, a pessoas com incapacidade física, com deficiência, a famílias carenciadas.

Publicado por Susana Ramos Martins na edição de Dezembro de 2011 do Voz das Misericórdias

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