sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Cidades de Valença e Tui legalizam união de facto

A vontade de reis e políticos sobrepôs-se à vontade das populações locais, mas nunca conseguiu quebrar os laços que há muito unem os povos de Valença e Tui, que avançaram para a criação de uma eurocidade.







“Eu não me importava mesmo nada de ser espanhola.” A frase, ouvida ali ao lado da fortaleza de Valença, soaria, noutros tempos, a sacrilégio, capaz de provocar um ataque cardíaco a um Dom Afonso Henriques (o conquistador deste território) ou ao seu filho Sancho I (que criou e mandou povoar a cidade). O problema é que, se qualquer um deles estivesse vivo, o mais certo é que tivesse de ser enviado para os cuidados intensivos de um hospital espanhol. O que tanto quiseram separar o tempo e o povo insistem em unir, e a criação da eurocidade Valença-Tui foi mais um passo dado nessa direcção.
Com existência legal desde ontem, após a aprovação pelos respectivos órgão autárquicos de ambas as cidades, a eurocidade é já uma realidade. A partir de agora, união é mesmo a palavra de ordem naquelas duas cidades do Alto Minho português e do Baixo Minho galego. “Não tenho quaisquer problemas em dizê-lo: por mim, há muito que era espanhola.” Maria do Carmo, sentada num banco de madeira, ao fundo da loja de toalhas e louça regional, insiste em interroper a filha. Nascida e criada no interior da fortaleza de Valença, símbolo da independencia portuguesa, esta minhota, se lhe dessem a escolher, não duvidava em trocar de nacionalidade. A filha, Manuela Sousa, confirma e concorda: “Adorava ser espanhola.”
Não é de estranhar a opinião destas duas mulheres. Há muito que as vidas dos locais se entrecruzam com as dos vizinhos tudenses. As fronteiras, a lingual e, em tempos, até as diferentes moedas nunca foram impedimento para o aprofundar do relacionamento. Que o diga Salustiano Faria, filho de trapicheira, pois também ele se dedicou ao trapiche (contrabando) a partir dos oito anos. O transporte illegal de bens e comida (atravessavam a fronteira com os produtos escondidos no corpo), que abandonou cedo, mas sobretudo o amor pelas espanholas, sempre aconteceu, com ou sem a vigilância policial. “Como era proibido passar para Espanha, havia a tentação de lá ir namorar. Chegar aqui e dizer que se tinha uma namorada espanhola era outra coisa.”
Maria do Carmo e Manuela Sousa estão dispostas a mudar de nacionalidade, mas não é por não gostarem de ser portuguesas. “Não é nada disso!”, explica a fi lha, depois de atender um cliente, dirigindo-se-lhe num galego perfeito. “É apenas por uma questão de qualidade de vida.” E exemplifica com o preço dos medicamentos que vai comprar à cidade vizinha. “Com o dinheiro que aqui custa uma caixa trago de lá duas.” O PÚBLICO confirmou numa farmácia no centro de Tui haver medicamentos que em solo espanhol chegam a ser dez vezes mais baratos. Mas é sobretudo o valor das reformas e dos salários (o salário mínimo espanhol é de 641,50 euros) que atrai estas duas mulheres.
O salário é também o que atrai muitos dos jovens ao outro lado da fronteira. Num grande outlet em Tui, não é necessário falar o famoso “portunhol” para que nos percebam naquelas palavras que escapam aos galegos. Por lá, em cada loja há pelo menos um empregado português. Por lá também, mas no posto de combustíveis, trabalha a galega Célia Gonzales. Sem parar de atender as fi las intermináveis de carros com matrícula portuguesa, explica que vive do lado português, em Monção, porque o preço das habitações é mais barato. Também o seguro do carro foi feito em território luso por sair mais em conta. Esta galega, de 26 anos, revela outras vantagens de viver em Portugal: são mais baratas as refeições fora de casa; as saídas nocturnas; o pão. “Vós vindes à procura de gasolina, nós vamos à procura de outras coisas.”

Cartão de eurocidadão
A criação da eurocidade Valença-Tui, a segunda da euro-região Norte de Portugal-Galiza, depois de Chaves-Verin, é, pois, a transposição para o nível político daquilo que há muito já acontece no dia-a-dia dos habitants locais. Isso mesmo admite o presidente da Câmara de Valença. Jorge Mendes confirma que as mudanças vão sentir-se sobretudo na gestão de equipamentos públicos.
Em termos operacionais, isso só irá acontecer no início do próximo ano. Até lá, irá ser criada uma agência da eurocidade, um espaço onde o conceito vai ganhar corpo físico. O passo seguinte, nestes últimos meses de 2011, será a criação de um logótipo e de placas de identifi cativas da eurocidade. Vai ser também criado um cartão do cidadão que irá permitir descontos na aquisição de determinados bens e serviços e dotar as autarquias de informação sobre quais os equipamentos que foram utilizados pelo habitants de Valença e Tui. É a formula encontrada para a divisão de custos. Em tempos de crise, a gestão partilhada vai permitir que as autarquias dos dois lados da fronteiras poupem recursos fi nanceiros, não duplicando equipamentos e assumindo a sua parte nas despesas desses espaços.
Mas é a pensar no futuro que este passo é dado. Os autarcas de ambas as margens do rio Minho confi rmam que um dos objectivos deste projecto é a preparação para o próximo Quadro Comunitário de Apoio, que terá fundos destinados exclusivamente às eurocidades. “Quem tiver eurocidade vai poder candidatar-se, quem não tiver fica de fora”, explica Jorge Mendes. Moisés Rodriguez, alcaide de Tui, confirma e sublinha que é também importante a questão da dimensão que passam a ter. Até aqui não eram mais do que cidades com quase 15 mil habitantes (Valença) e 18 mil (Tui), passando agora a representar um universo de 33 mil pessoas de dois países. “A partir de agora, qualquer declaração que façamos é de carácter
internacional.”
Os representantes deste universo populacional acreditam que a criação da eurocidade não irá representar qualquer problema. “Há a questão da nacionalidade, da nossa identidade, mas creio que aqui na fronteira essa questão não se põe”, defende o presidente da Câmara de Valença, acompanhado pelo seu homónimo tudense, para quem Valença e Tui são “uma única cidade com um rio pelo meio”.



Autarca quer polícia municipal comum

Segurança, protecção civil e saúde são áreas prioritárias de cooperação

Quando há fogo em Tui, toca a sirene dos bombeiros voluntários de Valença. Há muito que assim é. No tempo em que o controlo na fronteira existia e a ponte internacional que une as duas cidades era fechada à meia-noite, já os bombeiros portugueses eram os responsáveis por acudir à população galega. Uma partilha que sempre funcionou e que justifica que Tui nunca tenha tido necessidade de formar o seu próprio corpo bombeiros.
“Os bombeiros voluntários de Valença são os bombeiros municipais de Tui”, nota o autarca de Valença, Jorge Mendes. Uma situação que vai ser mantida e reforçada com a criação da eurocidade. E, para além da protecção civil, a actuação conjunta deverá estender-se, segundo estudos realizados pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e pela Junta da Galiza, a áreas tão diversas como a cultura, o desporto e o turismo.
Dependente do aval dos governos dos dois países está a cooperação noutras duas áreas importantes, a segurança e a saúde. O presidente da Câmara de Valença, Jorge Mendes, admite que no actual momento criar uma polícia municipal naquela cidade portuguesa é tarefa difícil e, por isso, explica que pediu ao Governo português para estudar a possibilidade a actuação da polícia municipal da cidade galega vizinha ser alargada a território valenciano. Já o alcaide de Tui, Moisés Rodriguez, gostaria de ver os serviços do centro de saúde local, que tem urgências a funcionar 24 horas por dia, de portas abertas para receber a população de Valença sem quaisquer constrangimentos legais.
Para tornar realidade essa e outras possibilidades no sector da saúde, não só na eurocidade, mas em toda a euro-região Norte de Portugal-Galiza, está em campo a Uniminho, uma associação transfronteiriça que engloba 21 municípios do Alto Minho e da Galiza. Com base num acordo entre Portugal e Espanha assinado em Janeiro de 2010, está a ser concluído um estudo que resulta na proposta de utilização comum dos equipamentos de saúde dos dois lados da fronteira. O presidente da Uniminho, Rui Solheiro, revela que a primeira fase do estudo, que aponta as vantagens na partilha de equipaqmentos na área da saúde, já foi apresentado aos dois governos ibéricos e agora está em fase fi nal de conclusão a última parte que quantifi ca os custos dessa utilização comum e propõe formas de a financiar.
Se os governos de Lisboa e Madrid aprovarem a proposta, os habitants do Alto Minho vão poder recorrer, por exemplo, a especialistas do hospital de Vigo, e os habitantes da Galiza vão poder fazer o mesmo nos hospitais de Viana do Castelo e de Braga. Até ao fi nal deste ano, o documento deverá estar concluído e entregue aos ministérios da Saúde de Portugal e Espanha. Depois, resta esperar pelo aval da tutela.

Publicado por Susana Ramos Martins na edição de 3 de Outubro de 2011 do PÚBLICO

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