sábado, 22 de outubro de 2011

Assoreamento dos portos pode deixar em terra centenas de barcos no Norte

De Vila Praia de Âncora à Póvoa de Varzim, pescadores de vários portos queixam-se da ausência de condições de trabalho e dos riscos para a navegação

Guarda-sol colorido espetado na areia, toalha estendida e pés na água, que o tempo convida na praia em que está transformado o porto de pesca de Vila Praia de Âncora. Fruto do “Orçamento do Queijo”, viabilizado em 2001 pelo deputado Daniel Campelo, actual secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural, ao Governo socialista de António Guterres, aqui foram gastos, numa primeira fase, 7,5 milhões de euros. Mas agora faltam ao Instituto Marítimo Portuário as centenas de milhar necessárias para garantir o seu desassoreamento, o que põe em causa, nesta localidade, a actividade de 27 embarcações da pesca artesanal. Só da Póvoa de Varzim para norte, são quase duas centenas os barcos, e muitos mais os pescadores, afectados por este excesso de areia nos portos.








“Agora vem tudo cá parar”, reclama Emanuel Franco, com um pé assente no cais, outrora fl utuante e agora enterrado na areia, e o outro dentro da Moisés Joel, a embarcação de pesca de que é mestre. Juntamente com a tripulação, aproveita a manhã de sol e de maré vazia para preparar as redes que vão utilizar na faina, mas só quando o mar o permitir. O assoreamento do portinho de Âncora impede-os de sair a qualquer hora, exigindo uma espera paciente pela próxima maré. Enquanto isso, são obrigados a partilhar o abrigo de pesca com os veraneantes que, fugidos ao vento, decidiram tirar partido daquilo que é uma dor de cabeça para os pescadores: a areia. Quando a água desce, o areal que entretanto se formou dentro do porto torna-se extenso e convida avós e netos. “Isto passou a ser a praia das crianças e das pessoas de idade”.

O cheiro a maresia acompanha Vasco Presa, que se junta à conversa depois de ter ido inspeccionar o seu barco, também ele encalhado na areia. Presidente da Associação de Pescadores de Vila Praia de Âncora, lamenta os prejuízos e o perigo que o assoreamento representa para a comunidade piscatória local, cada vez mais reduzida. “Reduziu-nos o trabalho em cerca de 50 por cento”. “O Portinho já está nos cuidados intensivos. Está quase morto. Se eu quiser sair agora, não posso. Os barcos ficam presos na areia mais de 12 horas e nós estamos a perder 50% do nosso trabalho”. De olhos postos na barra de Vila Praia de Âncora e braços abertos a gesticular, Vasco Presa exige uma “solução rápida”.

Várias dragagens foram feitas para tentar resolver o problema, a última delas em 2010. Inicialmente previa-se que custasse ao Estado 500 mil euros, para extrair 70 mil metros cúbicos de inertes, mas, devido a restrições orçamentais, retiram-se apenas 30 mil metros cúbicos, por 278 mil euros. Os resultados duraram pouco. Dragagens, diz o porta-voz dos pescadores, não são pois solução, apontando outras medidas para resolver o problema, como a intervenção nos molhes já construídos.

Soluções é também o que pedem os pescadores de Esposende para o porto que “está completamente assoreado” e para a barra que “está assoreada há mais de um século”. Além dos encargos fi nanceiros que esses condicionamentos provocam aos profissionais da pesca, o presidente da associação local de pescadores, André Cardoso, fala no “perigo desgraçado” que representam. “Já houve vários acidentes mortais e todos os dias há problemas que, por não haver mortes, não ficam registados. Só este ano já houve cerca de duas dezenas de acidentes que poderiam ter resultado em morte”.

Menos sorte tiveram no ano passado três pescadores à entrada da barra de Caminha, também ela há décadas a debater-se com problemas de assoreamento. Um dos sobreviventes do acidente em Março de 2010 com a embarcação Vimar, Vítor Santos, não hesitou em atribuir as culpas do naufrágio ao assoreamento da barra e ao banco de areia, “que é um perigo escondido para quem é obrigado a por lá passar para ir trabalhar”. Quase dois anos depois, continua tudo na mesma. Paulo Silva, o actual presidente da Associação de Pescadores do Rio Minho e Mar de Caminha, exige “soluções rápidas” para o problema.

Há duas semanas, a Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar, que representa 600 barcos de todo o país, 80% dos quais a trabalhar a norte da Figueira da Foz, chamou a atenção para o mesmo problema, desta vez na Póvoa de Varzim, em cujo porto tem a sua sede. O presidente desta associação, José Festas, considera mesmo que, por causa do excesso de inertes, a Póvoa tem nesta altura “a pior barra do país”, causando inúmeros problemas aos mestres, mas também aos navegadores que utilizam a marina que está a ser explorada pelo Clube Naval Povoense. É que com o assoreamento, o mar “está a partir” na entrada da barra e basta uma pequena ondulação para que a autoridade marítima proíba a navegação, condicionando o rendimento dos pescadores ou atrapalhando o calendário das embarcações de recreio.

José Festas afi rma que em Março começou a insistir junto do Governo para que a dragagem fosse efectuada no pico do Verão para salvaguardar a limpeza do canal antes da chegada do Inverno, mas não obteve sucesso e a situação foi piorando. “Se a dragagem não arrancar já, nos próximos meses a barra vai estar fechada em 90% do tempo. E isto é inaceitável. Serão centenas de famílias que directa ou indirectamente fi carão com os rendimentos afectados e isso, consequentemente, piorará a economia da região. Inclusive, a lota da Póvoa vai ficar ‘às moscas”, alerta.

Mais a norte, em Âncora, já há quem seja forçado a procurar outras paragens, porque o portinho local “já está morto”, diz Vasco Presa. Há mestres que começam a atracar as suas embarcações nos portos mais próximos, sobretudo na Galiza. “Não tendo infra-estruturas para trabalhar, não podemos dar a rentabilidade fiscal que o Estado espera”. Lembrando todos os custos associados à profi ssão, o dirigente associativo considera que o Estado só pode exigir que os pescadores paguem impostos se lhes garantir condições nos portos.

IPTM sem verba garantida para retirar areias

Sobrevivência das comunidades piscatórias ficará em causa se não houver dragagens


Na análise que faz ao fenómeno do assoreamento dos portos, o especialista em Hidráulica e Recursos Hídricos da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Veloso Gomes, é taxativo: “Não há soluções defi nitivas para o problema e desengane-se quem julgar que agora se faz mais um quebra-mar a norte ou a sul, ou um buraco a meio do quebra-mar, para resolver o problema defi nitivamente. Isso não existe!”, avisa. O académico garante que “só com trabalhos de manutenção” se gere esta situação, o que vai de encontro à posição do presidente do conselho directivo do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM), João Carvalho. Que admite, contudo, que a dragagem de todos os portos sob a sua administração, prevista para 2012, está dependente da “existência de verbas correspondentes”.

Este problema afecta infra-estruturas de apoio à pesca e à navegação de recreio de Caminha, Vila Praia de Âncora, Castelo de Neiva, Esposende, Póvoa de Varzim, Vila do Conde, Aguda e até da ria de Aveiro, onde as associações contactadas pelo PÚBLICO contabilizam um total de 190 barcos de pesca, de várias dimensões. A realização de dragagens é pois, segundo Veloso Gomes e o IPTM, “imprescindível” para a viabilização das actividades económicas que sustentam essas comunidades piscatórias. Só que as dragagens tornaram-se um custo pesado para o Estado português após ter sido alterada a legislação impedindo a comercialização dos inertes dragados e obrigando a sua deposição ao largo da costa. Até aí, as empresas que realizavam as dragagens podiam vender a areia extraída e, desta forma, baixar os custos da operação.

Para diminuir a despesa das intervenções, Veloso Gomes defende a realização a uma escala nacional, ou pelo menos regional, de concursos públicos para a atribuição das empreitadas de dragagem, deixando para trás o que acontece actualmente, em que a empreitada é adjudicada caso a caso, o que poderá permitir a poupança de algum dinheiro. Uma vantagem classificada como “controversa” pelo responsável pelo IPTM. João Carvalho considera que a realização de um concurso global seria “prejudicial para as reiais condições de concorrência no mercado” e deixaria o Estado “monodependente do único adjudicatário”. Por isso, o IPTM vai continuar a apostar na realização de procedimentos concursais localizados.

Dinheiro para avançar com as dragagens é que parece não haver. O delegado de Viana do Castelo do IPTM disse esta semana no Portinho de Vila Praia de Âncora, onde realizou uma visita a convite do deputado socialistaJorge Fão, ter sido “cortado” o orçamento canalizado para a dragagem daquele e de outros dois portos.Em resposta ao PÚBLICO, o IPTM confirma que para este ano aguarda autorização para avançar apenas com a dragagem de 35 mil metros cúbicos de areia no porto da Póvoa de Varzim. Uma intervenção avaliada em 325 mil euros e que admite já ser “insuficiente”.

No entender do presidente da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar, José Festas, terão de ser retirados 50 mil metros cúbicos de areia para que a situação fi que resolvida por “um ou dois Invernos”. “Este ano houve uma dragagem de 15 mil metros cúbicos em Vila do Conde, gastaram-se 300 mil euros e os pescadores dizem que a situação não está grande coisa. Na Póvoa, com a barra como está, o que vão fazer não vai chegar para nada”, diagnostica o mestre, que continua a defender a existência de uma draga em permanência nos dois portos.





Festas antevê protestos


“O porto da Póvoa, pelas suas características e importância, tinha de permitir a saída dos barcos com vagas de quatro metros [de altura]. O que acontece agora é que a partir de um metro e meio as autoridades já se começam a preocupar e aos dois metros já se corre o risco de ver o comandante da capitania proibir a navegação, como sucedeu, por duas vezes, em pleno Verão, o que não é de todo normal”. José Festas garante que compreende a decisão das autoridades, mas admite que, após muitos dias parados a ver outros barcos a passar ao largo para a faina, os pescadores conhecidos por serem “aventureiros” se sintam tentados a arriscar uma saída, até porque logo a seguir há “um fundão” e a segurança da navegação é “perfeitamente normal”.

O dirigente associativo entende que, na questão do desassoreamento do portos de pesca, “há fi lhos e enteados”, sendo os locais com capacidade para acolher navios ou iates e com administração própria benefi - ciados em relação a estruturas mais pequenas sob a alçada directa do IPTM. José Festas diz que em Viana do Castelo, Leixões, Aveiro e Figueira da Foz – com gestão a cargo de sociedades anónimas de capitais públicos – é permanentemente assegurada a navegabilidade, porque são estruturas “que dão dinheiro”, enquanto nos portos de Caminha, Vila Praia de Âncora, Esposende, Póvoa de Varzim e Vila do Conde, as areias em excesso só são retiradas depois de “muitas reivindicações públicas, ameaças e quando já há perigo para os pescadores”. Não espanta por isso que anteveja, a curto prazo, “protestos fortes” dos pescadores que frequentam os portos “quase abandonados”.




A explicação

Veloso Gomes explica o fenómeno de assoreamento que afecta vários portos e portinhos. "A costa portuguesa oeste está a ficar sem areias, mas à medida que vamos construindo abrigos de pesca, mesmo em estuários, as que circulam ao longo da costa têm tendência em abrigar-se. Procuram o mesmo que os pescadores: proteger-se". O "efeito contraditório" provoca o assoreamento dos portos de mar, piorando as condições operacionais e de segurança.

Textos escritos por Susana Ramos Martins e Ângelo Teixeira Marques e publicados na edição de 16 de Outubro de 2011 do PÚBLICO

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