segunda-feira, 9 de março de 2009

Viana do Castelo tem mais de 25 mil alcoólicos

"O álcool é manhoso, é poderoso, é traiçoeiro, é bom. Eu sou alcoólico porque gosto de beber". As palavras saem da boca de R. com amargura. Aos quarenta e tal anos confessa-se alcoólico. "A primeira bebida que tomei devia de ter para aí uns 10 anos. Depois fui bebendo e a partir dos 16 já apanhava uma bebedeira por semana". "Depois, em vez de uma bebedeira já eram duas por semana". Apesar de o álcool dominar a sua vida, R. constituiu família , esteve casado cerca de 15 anos. Durante esse período, confessa, provocava discussões com a mulher só para ter uma desculpa para beber. "Discussões que criava propositadamente para dormir no sofá e poder beber whisky de uma garrafa que estava na sala".
Curiosamente, foi já sóbrio que se divorciou. "Quando deixamos de beber queremos ocupar um espaço que nunca tivemos na família e, nessa altura, há o confronto", admite. Além de destruir a família, o álcool quase que destruía também a vida de R. Embriagado, com 1,45 gramas de álcool por litro de sangue, teve um acidente automóvel que o deixou em coma numa cama de hospital durante uma semana. Mas a primeira coisa que fez, assim que se levantou, foi consumir uma bebida alcoólica. "De uma coisa tenho a certeza: para se deixar de beber ou para se tomar o primeiro passo tem que se bater bem no fundo".
P. , também com quarenta e tal anos, diz identificar-se com a história de R. "em quase todos os aspectos". "Eu também andei 30 anos a consumir álcool", admite. "A maior parte dos alcoólicos acabam por perder emprego e família. Eu não perdi nada disso. O que perdi foi a nível físico. Bati muito no fundo. Reconheço que nos últimos anos de consumo as coisas foram terríveis. Deixei de me alimentar. O que comia numa semana é menos do que aquilo que como agora numa refeição. Eu alimentava-me da bebida. Deitava-me a beber e acordava a beber".
P. e R., alcoólicos em recuperação, partilham as suas histórias com os restantes cinco elementos presentes na pequena sala do Centro Paroquial de Caminha, que nas noites de todas as sextas-feiras serve de centro de reuniões aos Alcoólicos Anónimos (AA). Caminha e Viana do Castelo são as únicas localidades do distrito onde há centros de AA. Trata-se, como explicam os membros, de "uma comunidade de homens e mulheres que partilham entre si a sua experiência, força e esperança para resolverem o seu problema comum e ajudarem-se a superar o alcoolismo". "O único requisito para ser membro é o desejo de parar de beber. Para ser membro de A.A. não é necessário pagar taxas de admissão nem quotas". A única exigência feita pelos A.A. é o anonimato.
A existência de um grupo de A.A. no concelho de Caminha explica-se por ser o alcoolismo um dos maiores problemas sociais do município. No Diagnóstico Social realizado no âmbito da Rede Social concelhia pode ler-se que "à semelhança de outras zonas do país, no concelho de Caminha assiste-se ao crescimento de dependências e de referências desviantes. É a toxicodependência e o alcoolismo que de uma forma crescente tem levado cada vez mais jovens para o mundo da marginalidade e consequentemente para exclusão". É com base neste argumento que os técnicos envolvidos no projecto da Rede Social de Caminha apontam a prevenção primária como a área para a qual devem ser canalizados todos os esforços, de forma a prevenir o alcoolismo e a toxicodependência, sobretudo, nas camadas mais jovens. Um plano que conta com o apoio do vereador caminhense responsável pelo pelouro da Acção Social. Paulo Pereira admite que o alcoolismo é um problema "grave"do concelho, pelo que considera importante "ocupar os jovens com actividades saudáveis, para que não caiam neste flagelo". "A prevenção é a grande aposta. Se conseguirmos fazer um trabalho de prevenção eficaz, no futuro podemos ter o problema minimizado", garante.
Dados estatísticos sobre o número de alcoólicos no concelho de Caminha parece não haver, mas O Caminhense conseguiu ter acesso aos dados do Centro Regional de Alcoologia do Norte sobre o alcoolismo no distrito de Viana do Castelo. De acordo com os números disponibilizados, na região há 25.410 alcooldependentes. No país serão 770.655.
Dados que o IDT, o Instituto da Droga e da Toxicodependência, pretende actualizar graças a um mega-estudo que está a realizar e que envolve 100 mil alunos. Os resultados deverão ser revelados no próximo ano. Nessa altura já os Centros Regionais de Alcoologia deverão estar integrados no IDT, que vai passar a comandar o combate a esta doença.
Entretanto, e enquanto estes dados não são actualizados, o Director Geral de Viação, Rogério Pinheiro, acrescentou em Janeiro, durante um debate na Assembleia da República sobre " os jovens e o álcool" promovido pela Associação Nacional de Empresas de Bebidas Espirituosas, uma outra informação preocupante: cerca de 36 por cento dos condutores que morreram no ano de 2005 em acidentes rodoviários tinham uma taxa de álcool no sangue acima da permitida por lei (0,5 gramas de álcool por litro de sangue).
Em Portugal, a iniciação no consumo de álcool ocorre por volta dos 13 anos, isto apesar da lei proibir a venda de bebidas alcoólicas a menores de 16 anos. É o que diz um estudo realizado em cerca de 600 escolas do país por Fernanda Feijão no âmbito do "European School Project on Alcohol and Drugs", que aponta para uma taxa de 47 por cento de jovens com 13 anos que consome álcool. Desses, 7 por cento admitiu já ter-se embebedo. Percentagem que cresce à medida que os jovens envelhecem. De acordo com o Centro Regional de Alcoologia do Norte, é aos 20 anos que se começam a revelar os problemas de dependência.
Diz a World Drink Trend, que avalia o consumo de álcool no mundo, que em 2005 cada português bebeu em média 115 litros de álcool. Os portugueses bebem mesmo 2,8 milhões de litros de bebidas alcoólicas por dia.
São números que o Gabinete de Atendimento à Família (GAF) de Viana do Castelo pretende contrariar. Por isso, desde a sua fundação que disponibiliza serviços "vocacionados para as áreas mais complicadas como a alcoologia e a toxicodependência", explica Manuel Baptista, porta-voz da instituição. "É um trabalho que tenta ajudar as pessoas a reescrever um projecto de vida, a capacitar-se com alguns recursos através da formação e através de alguns apoios mais informais de forma a que a pessoa com problemas ao fim de algum tempo possa inserir-se profissionalmente, ter um percurso pessoal de reinserção e possa, efectivamente, recomeçar com um projecto de vida". "Durante estes 12 anos nós fomos abrindo para cada pessoa que chegou um processo. Se são pessoas do mesmo agregado familiar o processo é o mesmo, caso contrário o processo é indiferenciado. Ao longo destes anos acumulamos 2800 processos familiares. Dessas 2800 pessoas, um razoável número entrou em recuperação", assegura Manuel Baptista, adiantando que a intervenção do GAF tem dois tipos de resultados: "há situações de pessoas que conseguem uma integração duradoura, muitas vezes mesmo definitiva. E existem situações de pessoas que numa primeira fase parece que conseguem inverter a situação de vida e conseguem iniciar um processo de inclusão. Mas depois retrocedem e quantas vezes já aconteceu termos de prestar novamente serviço a essa pessoa que não conseguiu aguentar o projecto de vida que tinha delineado".
Manuel Baptista aponta "o incentivo ao início do consumo de álcool em tenra idade" e a "interioridade" como razões que explicam o elevado número de alcoólicos no distrito de Viana do Castelo.
Dois desses alcoólicos são P. e R.. Ambos estão em recuperação graças à ajuda dos AA. R. esteve sóbrio durante quatro anos, mas teve uma recaída, o que, como admite, é bastante comum, já que "as probabilidades de recaída de um alcoólico são de 80/90 por cento". O álcool é socialmente aceite, logo está ao dispor de qualquer um, é vendido ao virar de qualquer esquina. "Quando tive a recaída tive a sensação que tinha caído de um edifício de 10 andares e a minha recuperação ainda está lenta", admite, apesar de estar novamente sóbrio há mais de um ano.
P., que já está há seis anos sem consumir álcool, confessa que "já há muito que não sabia o que era a vida", mas que nestes últimos seis anos tem vivido "em pleno". "Sou alcoólico! Deixei de ser bêbedo, mas continuo a ser alcoólico e vou sê-lo até morrer", admite, confessando saber que a sua sobriedade é colocada à prova todos os dias. "A distância de uma recaída é o café mais próximo e nós sabemos disso". Resta-lhes aprender a viver com a tentação sempre presente nas suas vidas. Eles e outros 770.655 portugueses.


Peça publicada por Susana Ramos Martins em O Caminhense em 2007

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