sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Órfão de país

………………… Faz uma pausa antes de responder. Respira fundo, mas a voz sai-lhe trémula: “nunca pensei em desistir da música pela falta de dinheiro”. Nem quando viveu três anos em Lisboa, entre 2005 e 2008, tendo no bolso apenas um euro por dia. Como é que se consegue sobreviver na capital com tão pouco dinheiro? “É estranho explicar isso. É difícil”, acrescenta com a voz já meio sumida. Jaime Alvarez, contrabaixista português - natural de Venade, concelho de Caminha -, tem 24 anos, mais de metade dos quais dedicados à música. Estudou a arte até ao ano passado em território português, mas apesar das boas notas – terminou a licenciatura em contrabaixo na Escola Superior de Música de Lisboa com 17 valores – o talento nunca lhe foi reconhecido em terras lusas. Foi obrigado a transpor a fronteira para, finalmente, ouvir palavras elogiosas, mas sobretudo para conseguir apoios para continuar a estudar. É que, apesar de pertencer a uma família de poucas posses, Jaime nunca conseguiu que, em Portugal, lhe fosse atribuída qualquer bolsa de estudos. Apesar das várias tentativas que fez. Agora, são os professores da escola onde estuda, considerada uma das melhores da Europa, que pedem a uma fundação portuguesa para apoiar o contrabaixista, que escrevem cartas de recomendação e até avisam a direcção daquela mesma escola que não pode perder um aluno como Jaime.

Alvarez começou o seu percurso musical na Academia de Música Fernandes Fão, em Vila Praia de Âncora, no concelho onde nasceu, mas logo a partir desse momento percebeu que a falta de dinheiro iria ser um obstáculo na sua carreira. Apesar dos dotes que já demonstrava, os pais tiveram de retirá-lo daquela actividade extra-curricular por não poderem fazer face a mais aquela despesa.
Seguiu-se a Escola Profissional de Música de Viana do Castelo. Nos primeiros anos teve direito a utilizar um contrabaixo emprestado pela própria escola, mas, quando estava já no último ano, foi obrigado a adquirir instrumento próprio. “A escola tinha poucos contrabaixos para emprestar e como estavam a entrar alunos mais novos, os mais velhos tiveram de comprar os seus próprios instrumentos para deixar os outros para os mais novos”, explica. Foi a primeira de muitas batalhas. A terminar o curso de instrumento, a carreira de Jaime esteve para terminar naquele preciso momento. Mais uma vez, por falta de poder económico. A escola não foi sensível aos argumentos dos pais do contrabaixista. A única saída foi mesmo a compra de um contrabaixo. Custava, na época, 3 mil euros. 3 mil euros que não existiam na casa de Jaime. “Os meus pais tiveram de fazer o sacrifício de vender um pedaço de terreno para conseguirem ajudar-me nessa fase da minha vida”, conta.
Já dono de um contrabaixo, Jaime Alvarez entrou no ensino superior, através da Escola Superior de Música de Lisboa. Pela capital, a vida continuou a não ser fácil. Nunca conseguiu qualquer apoio de qualquer entidade. Viveu com pouco nos bolsos, mas com a alma cheia de notas musicais.
Terminada a licenciatura em 2008, sonhou mais alto: estudar na Escola Superior de Música Rainha Sofia, em Madrid, Espanha. Com o contrabaixo que os professores de Lisboa diziam ser “fraquinho” foi fazer as provas de acesso “nervoso”. “Achava que era uma prova de vida ou de morte. Influenciaria e muito o meu futuro”, confessa. Sabia que a assistir estavam “os melhores professores” e, por isso, não podia falhar. “Mas fui falhando e terminei a prova a dizer que não havia hipótese de ser admitido na escola”, acrescenta. Enganou-se! Entrou numa das escolas com provas de selecção mais exigentes e à qual concorrem músicos de todo o mundo e obteve, logo no primeiro momento, uma bolsa de estudos. Ao contrário do que acontecia em Portugal, onde tinha de mendigar apoios que nunca obteve, em Espanha são as próprias escolas que informam os alunos sobre as possibilidades de apoios que existem. “A escola encaminha os alunos para procurar bolsas de estudo, uma vez que a propina é muito cara: são 18 mil euros por ano”, refere Jaime Alvarez, que conseguiu o apoio da Fundação Carolina. Recebe uma bolsa mensal de 1.200 euros. Metade é para pagar, todos os meses, a propina da escola. A outra metade chega apenas para pagar a renda e as despesas da casa. Tentou ainda a bolsa da Fundação Gulbenkian, mas disseram-lhe que “não tinha nível para obter uma bolsa para estudar em Espanha”. Curiosamente, da mesma opinião não partilha o espanhol Jesus Gómez Madrigal, professor de Jaime. Numa carta enviada ao júri das bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian, a que tive acesso, aquele professor da Escola Superior de Música Rainha Sofia sublinha que Jaime Alvarez tem “qualidade musicais que se destacam”. Nesse mesmo documento, o professor pianista e catedrático de educação auditiva acrescenta que o estudante português mostrou “estar indiscutivelmente entre os melhores alunos” daquela escola espanhola. Tanto assim é que Jaime, assegura o professor, “perfila-se como um dos candidatos a melhor aluno do ano na cadeira de contrabaixo”. Por tudo isto, Jesus Gómez Madrigal recomenda à Fundação Gulbenkian que o “jovem talento português seja convenientemente apoiado para poder prosseguir os seus estudos”. Termina garantindo que “Jaime António Mendonça Alvarez vai converter-se, com toda a segurança, num dos músicos portugueses de maior projecção nacional”.
Jaime não esconde o orgulho, mas ainda aguarda por uma resposta da fundação portuguesa à carta do seu professor. Diz sentir-se “órfão” do seu país: “é complicado ir para fora e não ter o apoio do país. Depois, é pouca a motivação para voltar e ensinar aos outros o que nos ensinaram lá fora”.
O dinheiro de mais uma bolsa de estudo permitir-lhe-ia ter uma vida menos sacrificada em Madrid, mas, sobretudo, seria utilizado na compra de um novo contrabaixo que permita acompanhar o seu desenvolvimento como músico. “É difícil chegar às aulas e ouvirmos os professores dizerem que vai haver uma prova de acesso a uma orquestra na qual vamos ser escolhidos devido à qualidade do instrumento”, lamenta. Contudo, o contrabaixo “fraquinho” não o tem impedido de somar vitórias. A última foi-lhe comunicada no dia 1 de Abril. Pensava que era mentira! Tinha sido admitido na orquestra da União Europeia. Foi o único contrabaixista português a consegui-lo. Mesmo com um contrabaixo “fraquinho”.
Enquanto o Ferrari dos contrabaixos não lhe vai parar às mãos, recebe com satisfação o carinho dos espanhóis. Tudo indica, mas ele por enquanto desvaloriza, que no final do ano lectivo vai receber das mãos da própria rainha Sofia o prémio de melhor aluno da escola na categoria de contrabaixo. Os pais já foram avisados para comprarem roupa nova.


Susana Ramos Martins

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