quinta-feira, 4 de agosto de 2011

"Quase todos os dias recolhemos animais que são abandonados"



Já não tem espaço para mais almas abandonadas. Não é o purgatóri, mas parece. Qualquer coisa como 300 cães e gatos estão neste momento sob os cuidados da Selva dos Animais Domésticos, a associação protectora de animais criada em Caminha há oito anos, que já não tem espaço no canil/gatil municipal que explora para mais animais. Almas que diariamente são abandonadas pelos donos, como se de um par de velhos sapatos se tratassem, encontrando refúgio em pessoas que não suportam vê-los de olhar perdido e vazio vagueando pelas ruas do concelho de Caminha. Município onde durante os meses de Verão o numero de animais abandonados aumenta exponencialmente.
O Caminhense foi tentar perceber as razões que conduzem ao abandono animal e o conhecer o trabalho que está a ser desenvolvido por esta associação de voluntários que gastam parte do seu tempo a ajudar, sem nada receberem em troca. A liderar esta equipa constituía por anónimos está Carlos Fernandes, presidente da Selva dos Animais Domésticos.










O Caminhense (C): Foi fundada por um grupo de cidadãos do concelho que estava preocupado com o elevado número de animais abandonados na região, sobretudo na quadra de Verão. É algo que se mantém?

Carlos Fernandes (CF): Sim, é um problema do concelho de Caminha, é um problema do pais e é até um problema do mundo. Eu diria que infelizmente as pessoas não tem sensibilidade necessária para perceberem que os animais são seres que têm também sentimentos, que têm dor, que têm sofrimento. Infelizmente as pessoas não se apercebem disso e pensam que os animais são coisas.

C: É também um problema de educação?
CF: Sim, evidentemente que é. Costuma-se dizer que se conhece a sociedade pela forma como se trata os animais. Muitos filósofos, muitos pensadores têm falado a respeito disso.

C: Nasceram em 2003. Contaram desde logo com a ajuda da Câmara de Caminha, o que permitiu a construção de instalações para acolher todos os animais que são abandonados no concelho. Instalações que nunca foram oficialmente inauguradas mas que estão a ser utilizadas desde 2008/2009.
CF: Nós não temos necessidade de fazer uma inauguração com pompa e circunstância, porque a nossa preocupação é dar atenção aos animais, é cumprir com o serviço público. Também não nos interessa estar a julgar em excesso a associação e o abrigo, porque infelizmente quanto mais se divulga, mais as pessoas encontram o caminho para abandonar os animais. As pessoas tomam conhecimento e deixam o abrigo sobrelotado. Neste momento estamos completamente lotados.

C: Que capacidade é que o abrigo tem para acolher cães e gatos?
CF: Em rigor, o abrigo tem capacidade para cerca de 200 cães e uma centena de gatos, mas já temos mais do que isso. Nas boxes onde deveriam estar três cães, às vezes estão quatro. E é isso que deixa as nossas boxes sobrelotadas. E nem sempre os animais se entendem uns com os outros, o que é natural porque eles fazem o seu território. Em algumas boxes conseguimos ter mais, noutras temos de ter menos, mas, de qualquer forma, quantos mais animais tivermos num espaço pequeno, pior é a qualidade de vida deles.

C: E mesmo assim as pessoas continuam a abandonar animais no concelho. Faz ideia da média d abandonos registada em Caminha?
CF: Não lhe consigo avançar neste momento com um número, mas quase todos os dias recolhemos animais abandonados.
Felizmente, conseguimos dar muitos animais, mas os que saem são os mais novos e mais bonitos. Mas isso da beleza é sempre muito relativo, porque muitas vezes as pessoas vão à procura de um animal esteticamente bonito, mas a empatia acaba por ser por outro e levam outro animal que não estava no seu pensamento.
Recomendo às pessoas que queiram adoptar um animal que não vão com uma ideia fixa de uma raça em específico porque muitas vezes vão com uma ideia de um animal, cuja raça até temos no canil, mas acabam por criar empatia com outro, que acaba por ser o escolhido.
As pessoas têm a ideia que os cães de raça é que dão status, quando o que dá status a uma pessoas  é ter um cão que demonstra ao seu dono uma afinidade e um carinho.

C: É uma questão de química, como nas relações humanas.
CF: Exactamente.

C: A Selva existe graças aos voluntários que prestam serviço no canil/gatil. São fundamentais para o apoio que esta associação dá aos animais abandonados.
CF: Evidentemente. Numa época em que se incentiva o voluntariado, nós, embora não tenhamos a quantidade de gostaríamos de ter, mas os poucos que são dão-nos um grande apoio.

C: Quantos são?
CF: É muito variável. Nós temos dias que temos três ou quatro pessoas a ajudar, outros dias temos uma ou duas. Se não fosse a Câmara a ajudar-nos com pessoal, seria impossível nós fazermos frente a quase 300 animais, somando cães e gatos.

C: É a Câmara de Caminha que paga o salário do técnico que faz a gestão do canil.
CF: É a engenheira Carina, que tem formação em zoologia. Mas a sua  grande formação (e tenho de elogiá-la e às outras pessoas que ajudam) é o amor e o carinho que tem pelos animais. A sua dedicação fora de horas. Ela junta um trabalho de voluntariado com um trabalho profissional, junta tudo, e cumpre o seu dever com amor.

C: Creio ser algo que já vem de família, até porque a dona Idalina, mãe da Carina, é a gênese desta associação.
CF: Não haja dúvidas que, a partir de Vila Praia de Âncora, a dona Idalina sempre fez e continua a fazer um trabalho meritório. Não podemos esquecer outras pessoas do concelho que também o fazem, como a professora Irene, mas a verdade é que temos pessoas, não só em Caminha como em todo o pais, que são inexcedíveis no cuidado com os animais, e a dona Idalina é um caso muito especial.

C: Quanto custa alimentar 300 bocas por mês?
CF: Não consigo precisar os números, mas com alimentação e cuidados de veterinário, limpeza, gastamos cerca de 50 mil euros por ano.

C: A verba é totalmente financiada pela Câmara, ou vivem também à custa de donativos?
CF: É claro que os donativos são fundamentais. É evidente que o apoio da Câmara é substancial...

C: Quanto é que a Câmara dá?
CF: A Câmara ajuda directamente com funcionários, também no pagamento de serviços de veterinário e alimentação. Digamos que há uma complementaridade entre nós.

C: Mas também contribui com uma verba monetária para o canil/gatil.
CF: Como o protocolo ainda não foi feito, faz normalmente os pagamentos directos. A Câmara paga algumas despesas, outras somos nós. Faz-se de acordo com as disponibilidades. O que importa para nós é que os animais tenham as suas necessidades satisfeitas.

C: Estes 50 mil euros chegam para alimentar todos estes animais, ou é preciso gerir muito bem para conseguir dar de comer a todos?
CF: Como tudo, é preciso gerir bem. Mais ainda num tempo que se vive em que as preocupações com o futuro, face à crise existente, são maiores, temos de gerir isto ao milímetro.
Nós temos estado em todas as feiras, em todos os eventos que há no concelho de forma a conseguir divulgar o trabalho da associação e também para angariar ajudas para podermos fazer frente às necessidades.

C: E também para incentivar as doações.
CF: Claro! Felizmente essa parte tem corrido bem.

C: Em média,  quantos animais são adoptados por mês?
CF: É variável, não consigo precisar um número. Consigo avançar apenas que  a percentagem de animais que entra é sempre maior do que a que sai, senão não tínhamos chegado ao numero que chegamos. Os animais que vão ficando são os mais idosos. Como a nossa filosofia é contra o abate, eles ficam até morrer.
Aproveito para informar que no próximo dia 10 de Agosto vamos realizar uma iniciativa para a recolha de fundos para a associação. Um grupo de artistas portugueses que estão na França, que estão agora a lançar um single, vão actuar em Vila Praia de Âncora, na Praça da República, a partir das 21 horas. Também vai actuar, nessa mesma noite, o Saul.
Deram-nos 800 CD e a venda desses discos, a cinco euros cada um, vai reverter para a Selva dos Animais Domésticos.

C: Retomando a questão das adopções: apesar de estarem lotados, vão recebendo sempre novos animais porque estas adopções vão sendo feitas.
CF: Neste momento procuramos restringir ao máximo a entrada de novos animais devido à falta de espaço.
É importante lembrar que o concelho de Caminha também tem direito ao canil intermunicipal da Valimar. Muitas vezes as pessoas querem que a gente fique com um animal porque não podem, arranjam sempre mil desculpas. Nós já começamos a responder que não podemos ficar com o animal e aconselhamos essas pessoas a entregá-lo no canil da Valimar. Como não sabem o que é que lá se vai passar com o animal, as pessoas ficam com medo e referem continuar com o cão em casa.

C: Lá não há garantias de que não sejam abatidos?
CF: Eu não gostaria de falar sobre isso porque não tenho informação segura e seria leviano da minha parte.
A verdade é que as pessoas com medo de que o seu animal não possa ser bem tratado...

C: É um pau de dois bicos, não é? Se por um lado vocês tentam promover o bem-estar animal e a adopção, por outro as pessoas ficam a saber que os animais têm boas condições no canil/gatil o que conduz a que sejam lá deixados propositadamente porque sabem que ficam bem.
CF: As condições nunca são as ideais. As pessoas tem de entender isso. O animal, a partir do momento que entra no abrigo, vai estar restringido no espaço  porque não temos tempo de andar a passear com eles.
Nós damos-lhes alimentação, procuramos trata-los muito bem, mas não tem a mesma liberdade que tem com as famílias por pior que seja a casa onde vivem. No canil nunca têm o carinho directo do seu dono (tão importante), nem têm o espaço que teriam no seu lar. Quando o animal vai para o abrigo é como se fosse para uma cadeia: vai ficar preso com um espaço que não é suficiente para a sua liberdade.

C: E eles sentem isso. Quando uma pessoa entra no canil/gatil todos ficam eufóricos como se vissem na pessoa a possibilidade de saírem dali.
CF: Quando as pessoas entram, os animais parece que escolhem cada pessoa que entra para tira-los dali. Tentam criar uma química com o visitante na tentativa da pessoa ficar ligada ao animal e o leve dali. Acontece muito isso.

C: O senhor consegue lá entrar sem se emocionar?
CF: Uma pessoa que está sempre lá já não se emociona como é normal com um visitante.

C: Que mensagem gostaria de deixar às pessoas  para fazer com que este ano seja diferente dos outros e não se vejam tantos animais abandonados no concelho de Caminha?
CF: As pessoas deveriam perceber que o animal é uma grande companhia. Numa época em que os problemas existenciais das pessoas levam-nas à procura de médicos, de tratamentos, de remédios, poderiam encontrar no animal uma grande companhia para diminuir o seu próprio sofrimento ajudando a diminuir o sofrimento do animal. Está provado que as pessoas que estão sozinhas em casa, têm no animal um grande tratamento psicológico. Faz-lhes companhia, ajuda a que o sofrimento a sua solidão se dilua, sendo o animal fundamental para isso.
Abandonar um animal é uma maldade muito grande e, se entrarmos na questão teológica, é até um pecado, mas é um pecado que as pessoas cometem contra si quando abandonam um animal.

Publicado por Susana Ramos Martins  na edição de 5 de Agosto de 2011 do semanário O Caminhense

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